O artesanal faz da cachaça uma joia rara

Gastrofelicidade
6 min readMay 23, 2019

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Nessas últimas semanas acabei falando mais de experiências do que de cachaça. Mas é que, se textos têm vida própria, as divagações etílicas são incontroláveis. Então elas me levaram numa viagem para dentro. Acabei falando mais sobre a forma como a cachaça mexe comigo e de como eu a enxergo de um ponto de vista, tanto psicológico quanto antropológico. Psicológico porque vejo a cachaça como um gatilho para despertar sensações e antropológico porque entendo a pinga como um elemento fundador da nossa brasilidade.

Esse lugar raiz de onde a cachaça fala a torna muito familiar. Talvez seja essa familiaridade, essa presença sem nem mesmo estar à mão, que a deixa tão banal e desqualificada, afinal, só o que é raro, é caro. Caro não no sentido de dinheiro, caro no sentido de estima. Por isso uma certa adoração por bebidas importadas tão boas (ou nem tanto) quanto a cachaça. Algumas tão idolatradas que se bebe em doses medicinais. Já aquilo que abunda a gente ignora as minúcias e as delicadezas para se farta de maneira indolente. A nossa branquinha é uma iguaria tão à mão que a gente usa para fazer remédio, para benzer, para limpar carnes de bode e frango caipira, usa ainda como desinfetante de ferimento e às vezes usa até como bebida. Nada contra esse multiuso da cachaça, afinal isso faz parte da cultura em torno dela. Mas é essa imaginação coletiva de uma cachaça panaceia, sempre à mão, que vai deixando a pinga mais desinteressante.

Uma cachaça que não se bebe, se sente

Se falarmos de cachaça, assim no geral. Ela é um espírito. Sua onipresença independe dela existir como produto. Já falei disso, mas só para reforçar, essa entidade que me atrevi a chamar de “cachaça cultural” é uma das faces da identidade histórica do brasileiro. E a gente deve a aprender a buscar nesse ideal de cachaça o sublime, não o indecoroso. Quando a gente entende que a história da pinga é parte indissociável da nossa constituição como povo, a gente deixa de dar atenção exclusivamente ao lado ruim, que existe, claro, e passa a apresentar para o mundo a cachaça como a bebida brasileira, não apenas produzida no Brasil, mas que carrega no DNA a cordialidade, manifestação de afeto que nos define lá fora.

O que precisamos é prestar mais a atenção na cachaça e extrair dela mais que apenas as sensações particulares do álcool.

Já para nós, bons bebedores em português, quando formos começar nossa experiência sensorial com a cachaça, não importa qual, a primeira coisa que poderíamos fazer é prestar reverências à essa entidade cultural. É aí que a psicologia e a antropologia viram pinga. A partir desse espaço intangível da cultura abre-se uma oportunidade para enriquecer essa ligação entre o corpo e a mente, que é o princípio da experiência sensorial. Apesar de assim, escrito, parecer algo complexamente chato e entediante, a gente faz isso quase que instintivamente toda vez que vamos beber. O que precisamos é prestar mais a atenção na cachaça e extrair dela mais que apenas as sensações particulares do álcool. É por isso que tenho falado tanto da cachaça e de como a apreciação dela é refinada e complexa.

Tudo é cachaça, mas cada uma tem sua personalidade

Agora, quanto a gente fala, de cachaça no particular a gente está falando em milhares de rótulos registrados (importante lembrar que sempre falo de cachaça-de-qualidade, portanto, que seguem normas e padrões para que possamos beber com segurança).

A Cachoeira da Onça é de São Gabriel da Palha, no ES. Um exemplo de tradição que vem evoluindo.

Se falamos de milhares de rótulos, falamos em de milhões de litros/ano à nossa disposição. Olhando, assim, à primeira vista, é muita cachaça junta, dá até para se afogar na euforia (porque enjoar de beber, nunca!). E realmente é. Mas é justamente aí que está a graça. São cachaças diferentes. São histórias diferentes, jeito diferentes de fazer, até de beber. Nenhuma outra bebida vai conseguir dar para a gente tanta oportunidade de brincar com os sentidos. Tem cachaça branca, envelhecida em amburana, ipé, jaqueira, angico, cedro, jequitibá, bálsamo. E é desse jeito que essa história de cachaça ser banal vai mudando. Quando a gente começa a perceber que não existem duas cachaças iguais, vai dando vontade de experimentar todas e ir aumentando nosso repertório. A cada litro aberto, uma nova rodada de sensações. É o frutado do amendoim, o adocicado da amburana, o amadeirado da peroba ou ainda a surpresa da cachaça branca. E a gente só conseguiu essa diversidade toda porque a cachaça é tradição. Aquela mistura de regionalidades, com inventividade foi forjando a personalidade de cada uma. Apesar das normatizações, que poderiam acabar com a riqueza da bebida, a pinga só fez melhorar. Foi o toque da ciência que deu à tradição a oportunidade de se refinar e transformar o rudimentar em artesanal. Sim, o melhor da nossa cachaça está na forma artesanal de produzir.

Poder experimentar sabores regionais pela primeira vez ou poder revisitar sabores e descobrir que, com o correr do tempo, eles mudaram (fica a pergunta, quem mudou? A gente ou a marvada?) Essa é a verdadeira riqueza da cachaça…

Não que a cachaça industrial (que é feita num processo um pouco diferente da de alambique) seja ruim. Ela não é. Mas falta à essa cachaça essência. Uma personalidade moldada pelas mãos do artesão. É sua alma que o mestre empresta à cachaça. Aquela safra de canas é amada, desejada acompanhada. O processo da colheita, o ponto do caldo, o calor da caldeira, tudo acompanhando com esmero e atenção, isso faz daquela safra uma bebida única e a cada safra, uma nova cachaça. A pinga de alambique vai mudando conforme muda a opinião e as vivência do artesão da cachaça. Não dá para desconsiderar esse envolvimento do homem com a cachaça que ele faz. Suas peculiaridades, sua espiritualidade e suas superstições ficam impregnadas naquele líquido e isso é que lhe dá originalidade. Uma pinga artesanal não produz nem tão rápido, nem em tanta quantidade que seja possível abastecer o país de norte a sul. Aí que vem a graça. Poder experimentar sabores regionais pela primeira vez ou poder revisitar sabores e descobrir que, com o correr do tempo, eles mudaram (fica a pergunta, quem mudou? A gente ou a marvada?) Essa é a verdadeira riqueza da cachaça, a personalidade forjada em cada alambique com o carinho e a atenção que só quem é artesanal pode dar. O resultado disso é uma bebida singular e de consumo restrito, que vai aguçar o paladar e a imaginação dos melhores bebedores.

Ao abrirmos a mente para essa diversidade de sabores, e começarmos a nos atentar aos nuances de cor, às notas aromáticas e as características culturais de cada cachaça, nunca mais vamos olhar para uma branquinha com desdém. Aliás, vai sobrar um olhar curioso e um desejo de saber mais sobre ela. Por isso, por mais que eu tente me desvencilhar da mão do ser humano, e falar da estrela cachaça, mais eu percebo que não dá para não falar de gente. Porque é gente que faz cachaça, é gente que se empenha em oferecer uma experiência singular, é gente que se dedica a colecionar rótulos, é gente que se propõe a fazer da cachaça um vetor de novas e boas sensações. Aos poucos vou me soltando do lastro do litro, e nadando no vasto mar das histórias. Por enquanto vou esquentando meus dedos e coando minhas ideias para procurar a melhor forma e as melhores histórias que aos poucos vão chegando, sejam aqui pelas divagações etílicas escrivinhadas, sejam pelos ensaios fotográficos, por que no final das contas, as experiências sensoriais são uma forma de despertar nossos melhores afetos com o mundo.

À sua saúde …

CACHAÇA!

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Por aqui escrevo minhas Divagações Etílicas. São impressões apaixonadas, estofadas de afeto e poesia sobre Gente, Cachaça e Comida. Mais cachaça que o resto!;-)

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